OS CONTOS ABAIXO SÃO DO LIVRO 

" COTIDIANO - O LIVRO DOS CONTOS CURTOS"


A Tormenta de Quinquinha 

De: Hélio Taques 

Sempre saía de casa no horário. Sua roupa parecia combinar com as cores do muro. Seu batom era de um tom avermelhado que, às vezes, lhe causava uma sensação de morte.
Naquele dia, em que o sol queimava seus lábios sem batom, houve uma grande tormenta em sua vida.

Maria Joaquina — Quinquinha, como era chamada pela vizinhança — saíra de casa duas horas mais cedo. Seu José estranhou:

— Já vai, minha filha? Está tão escuro ainda, mal chegou!

E ela, cética, respondeu:

— Realmente está cedo... para o senhor cuidar da vida dos outros.

Nunca respondera daquela forma. Andava sempre bem-humorada. Seu José, que se levantava às cinco para varrer a calçada, apenas resmungou e continuou a varrer as folhas da sete-copas.

Já passava pouco mais do meio-dia quando finalmente resolveu entrar na clínica. Quinquinha, que era cobradora de coletivo, não fora trabalhar naquela manhã de sexta-feira.

Voltemos à noite passada.

Carlos, seu antigo namorado, havia-lhe reencontrado em um ambiente inóspito, onde as moscas pareciam gente querendo devorar a carne gordurosa da churrascaria de rodízio barato.
Ela, a princípio, hesitou em sentar-se à mesa, mas Carlos insistiu:

— Senta, minha querida! Há muito tempo que não a vejo!

Ela sussurrou timidamente:

— Não posso... tenho marido.

Quinquinha tinha uma fidelidade inabalável, mas o charme dos olhos claros e os cabelos pretos de Carlos realmente a seduziram.
Carlos se levantou, puxou uma das cadeiras e balbuciou:

— Senta... hoje é por minha conta.

A conversa entre Carlos e Maria Joaquina perdurou até a noite. Logo depois da churrascaria, foram ao Paradise Motel.
O batom de Quinquinha parecia marcas de sangue na branca cueca de Carlos. No lixeiro do banheiro do motel, já constavam alguns preservativos usados. Muito exausta, Quinquinha disse:

— Essa é a última, Carlos... meu marido não gosta que eu chegue em casa tarde.

Carlos, cinicamente, respondeu:

— Quem? O José?

E mais uma vez, naquela noite, Quinquinha gemeu de prazer.
E, ao final do gemido, Carlos gritou:

— Não! Não é possível!

Assustada, Quinquinha o indagou:

— O que aconteceu?

— O preservativo estourou!

— Fica calmo... eu tomo anticoncepcional.

— Oh, minha linda... não é isso. Há mais de um ano eu sou soropositivo!

Naquela madrugada, começava a tormenta de Quinquinha!



Um Dia a Gente Envelhece e se Esquece


De: Hélio Taques



Enquanto peregrinava na rua, lembrava do meu passado infantil. Da mamãe, do papai e de todas as pessoas que fizeram parte da minha vida.
Lembro-me dos meninos jogando bolita, das pipas amarelas e da manga verde com sal. Ainda me lembro da vovó fazendo bolinho de chuva no sol de quarenta e dois graus.

Havia muita fartura na minha casa. Aos domingos, sempre tinha feijoada com muito bucho e tripa de boi.
Eu não gostava muito, mas o tio Zé até passava mal.

Só não me recordo... do que fiz ontem.

Na adolescência, lembro-me do meu primeiro beijo, da minha primeira masturbação com a Playboy, do primeiro encontro e do primeiro soco na cara por causa de uma briga.
Lembro-me dos amigos tocando violão e da minha banda fazendo sua primeira apresentação.
Lembro-me da primeira vez que fiz amor.

Só não lembro... do rosto da mamãe e do papai.

No meu casamento, os detalhes do vestido da minha noiva voltam-me à memória.
Os tons dourados do meu terno parecem brilhar no meu pensamento.
O tio Zé, no meu casamento, comeu tanto que, no outro dia, teve que ser internado. Coitado!
Naquela época, o tio Zé já era bem velhinho para comer demais.

A Aurora, minha noiva, me chamou no canto do salão todo enfeitado e sussurrou o quanto estava feliz — e eu sorri como nunca na minha vida.
Hoje posso dizer que fiz uma pessoa feliz.

Fecho os meus olhos, vejo a mamãe chorando de ciúmes da Aurora. Mamãe era tão sentimental.
Lembro-me, como se fosse agora, da falta que papai me fez naquele dia — e ainda me faz.

Só não lembro... da última vez que o vi.

Já casado, sinto a emoção de entrar na minha casa com cheiro de tinta fresca e móveis novos.
O primeiro sono na minha cama de casado.
O primeiro pum da Aurora — quase morremos sufocados.

Foi muito engraçada a primeira vez que descobrimos que seríamos pais. Nós gritávamos e chorávamos.
No nascimento de Mário, o doutor César disse que o bebê era gordo e tinha olhos azuis.
Mário tinha os olhos azuis iguais aos de Aurora.

Nessa época, me lembro da tristeza de não poder ser mais filho de ninguém.

Só não recordo... e nem sinto mais o perfume da mamãe.

Na segunda gravidez, veio uma menina.
Estávamos assistindo E o Vento Levou, quando a dor chegou.
Infelizmente, Aurora não conseguiu sair com vida.
Mas Mariana é sua cara.
Até faz um macarrão igual ao da mãe.

Só não consigo lembrar... do sabor do macarrão da Aurora.

Os meus filhos se formaram, casaram-se e se mudaram.
Agora sou vovô.

Só não lembro... os nomes dos meus netos.

Troco nomes igual bebo água.
Esta aí é uma atividade que pratico todas as horas: bebo muita água.
Tenho muita sede.
E tenho muita vontade de voltar no tempo.

Hoje decidi sair cedo e caminhar pela cidade:
ver o prédio no qual eu trabalhava,
ver a igreja na qual me casei,
ver a praça onde namorei
e tomar um banho na praia onde me embebedei.
Relembrar o que ainda não esqueci...

Faz um ano que... ando com um cordão e um cartão no meu pescoço.
Nem sei pra que serve.

Os meus netos brincam comigo dizendo que eu não me lembro de nada, que estou velho demais e que só dou trabalho para os pais deles.

Fico pensando nos meus filhos na minha idade...
O que será deles?

Na praia, uma mulher me perguntou:

— Qual o seu nome, senhor?

— ... ... ... ...?

Joguei o meu cordão ao mar e voltei para casa — que nem lembrava onde ficava.

Fui reencontrar os meus filhos algum tempo depois... no meu velório.

Ah! E meus netos jogavam bolitas no meu velório.

Isso... já não me esqueço mais.

CONTE-ME O QUE ACHOU DOS TEXTOS?